A Primeira República, embora não conte com a mesma aura mítica construída em torno do Segundo Reinado, também desperta certas simpatias nos conservadores. Afinal, o Brasil continuava a ser comandado pelos representantes da grande propriedade, homens de aparência austera, que impunham respeito com seus fraques, cartolas e monóculos. A sistemática exclusão das massas da vida política e sua imediata repressão quando se aventuravam a ultrapassar as barreiras do costume não deixam, naturalmente, de inspirar o saudosismo de alguns. Todavia, não será nos anos finais do século XIX e nas primeiras décadas do século XX que encontraremos a "decência perdida".
O novo regime, apesar de ter eliminado aberrações como o Senado vitalício e o Padroado, se mostrou inerte no que se refere às mazelas sociais herdadas do Império. Podemos ver, enquanto exemplo crítico, o descaso com a saúde dos habitantes da importante cidade portuária de Santos, que morriam aos milhares, todos os anos¹, como se não existissem, às vésperas do século XX, políticas de saneamento básico e de imunização. A negligência estatal pode ser qualificada, sem exageros dramáticos, de genocídio.
O racismo herdado da formação colonial e da monarquia, talvez agravado pelo aumento do prestígio de seus doutrinadores "científicos", marcava presença em todos os setores da vida social. Assinalemos, com alguns episódios, sua ocorrência, na forma bem explícita, no futebol²:
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Também corriqueiros no Império, os castigos corporais infligidos aos soldados e cabos da Marinha continuaram a fazer parte do cotidiano da instituição até 1910. A possibilidade de que um marinheiro viesse a receber centenas de chicotadas³ remete o pensamento às condições dos escravos no Calabouço carioca de oitenta anos antes.
A fábula dos patriarcas inatacáveis, que se escandalizariam com a corrupção da Nova República, cai por terra quando examinamos, logo na presidência de Deodoro, as consequências da política econômica do ministro Ruy Barbosa. Sob o pretexto de participar da industrialização do Brasil, numerosos homens de negócios criaram empresas fantasmas, o que resultou, junto com outros fatores, na crise do Encilhamento4. Notemos, mais uma vez, que estes indivíduos se formaram, sem exceção, no Segundo Reinado.
A República eliminou o detestável voto censitário. Entretanto, o sistema eleitoral permaneceu desonesto. Como se não bastassem as diversas modalidades de fraude, os oposicionistas capazes de sobreviver após a abertura das urnas acabavam, em regra, "degolados"5.
Os poderosos da Primeira República, tal como seus antecessores do Império, fizeram uso sistemático das autoridades policiais para impor seus interesses políticos e econômicos. O clientelismo, visto por alguns como um bem, tinha sua outra face nos desmandos de delegados e subdelegados a serviço dos oligarcas municipais6.
Recorrendo a José Murilo de Carvalho, atestamos que Carlinhos Cachoeira seria, provavelmente, uma figura palatável ao velho esquema oligárquico. O dinheiro do crime e da contravenção, há um século, já era passível de lavagem através do processo eleitoral7.
Como falamos em criminalidade, é fácil verificar que a associação entre o Estado oligárquico e o banditismo comum se estendia a outros campos. Principal inimigo da polícia de vários estados, Lampião, sob o pretexto do combate à Coluna Prestes, foi reconhecido como capitão do Exército brasileiro!8
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Já perto da Revolução de 1930, por ocasião da revolta iniciada na cidade de Princesa contra a administração estadual da Paraíba, adversária do presidente Washington Luís, sobressaíram a venalidade e a delinquência do governo central. Enquanto se dificultava ao governo paraibano o acesso a armas e munições, Júlio Prestes, candidato oficial à Presidência da República, contrabandeava estes materiais para os revoltosos9.
Notas:
1-Ver Ana Lúcia Duarte Lanna. Uma cidade na transição- Santos: 1870-1913. São Paulo-Santos: Hucitec, Prefeitura Municipal de Santos, 1996, p. 69.
2- Ver Rubim de Aquino, Fernando Vieira, Gilberto Agostino e Hiran Roedel. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais: da crise do escravismo ao apogeu do neoliberalismo. Rio de Janeiro: Record, 2005, pp. 221 e 279.
3- Lincoln de Abreu Penna. República brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 101/102.
4- Idem, p. 59.
5- Ver Adriana López e Carlos Guilherme Mota. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora Senac, 2008, p. 593.
6- Victor Nunes Leal. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, pp. 67/68.
7-José Murilo de Carvalho. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 38.
8- Neill Macaulay. A Coluna Prestes. São Paulo: Difel, p. 186.
9- Ver Inês Caminha L. Rodrigues. A Revolta de Princesa: poder privado x poder instituído. São Paulo: Brasiliense, 1981, pp. 30/31.
[Fecharemos esta série, oportunamente, com algumas observações sobre a ditadura civil-militar estabelecida em 1964]
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