No início de 1989, quando tinha 21 anos, prestei concurso para a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Frequentei, durante uns quatro meses, a Academia de Polícia, mas acabei por não tomar posse, já que fui convocado, na mesma época, para trabalhar no banco estadual, o Banerj, que oferecia uma remuneração bem superior. O curso para escrevente de polícia era bastante instrutivo. Havia aulas de Direito Constitucional e Penal, Medicina Legal e Datiloscopia, além das matérias mais "específicas". Entretanto, ali pude reconhecer um dos aspectos mais lamentáveis que marcam a cultura policial: a visão do negro como alvo preferencial das ações repressivas.
Uma instrutora de tiro certa vez relatou, em tom irônico, que um colega negro se queixara do fato de que o "álvaro", boneco de papelão destinado às balas saídas dos revólveres dos alunos, era sempre tingido de preto. A réplica foi escrachada: "Quem mandou nascer do lado de lá?". Outro professor, então delegado na ativa, em mais de uma ocasião, ao defender a razoabilidade do direito ao aborto em alguns casos, se reportou à hipótese "da lourinha estuprada pelo negão, que não gostaria de olhar para uma criança com a cara do seu agressor". Estes absurdos não foram ditos em pequenos círculos de amigos, mas em salas lotadas. Inculcava-se nos estagiários brancos e negros, à margem dos conteúdos programáticos e muito provavelmente sem prévio cálculo, a noção de que o negro, se não constituía obrigatoriamente o inimigo, ao menos merecia ser avaliado como tal.
Pouco tempo depois, minha mulher, recém-formada em Serviço Social, se candidatou a uma vaga nesta carreira em um dos CRIAMs (instituições que abrigam parte dos adolescentes infratores) da Baixada Fluminense. A seleção incluía entrevista, na qual lhe perguntaram, logo no princípio, se casaria com um homem negro. A resposta, necessariamente exaltada, foi um "sim, eu não tenho problemas com a minha raça". Os entrevistadores, ao invés de aferirem o que ela conhecia da profissão, insistiram em questões ligadas à identidade étnica. Isto não ocorreu com os demais candidatos, que declararam ter sido arguidos acerca de elementos teóricos do Serviço Social. As perguntas aparentemente fora de propósito, na verdade, encerravam uma única indagação: "Você ficará ao lado dos seus irmãos de raça que são a clientela da casa e precisam ser aprisionados ou do Estado que pagará o seu salário?" A postura contrária ao que se desejava só poderia resultar na contra-indicação, que efetivamente se verificou.
Mesmo que todas estas histórias possam causar revolta, nenhuma delas é exatamente trágica, se comparada a milhares de outras, em que pessoas morreram, levaram tiros ou foram detidas injustamente ou com truculência pela simples percepção, por parte de agentes do Estado, de que eram negras. O racismo no aparato repressivo brasileiro é um dado estrutural, que remonta às próprias origens da instituição policial no país, ainda antes da Independência.
Em pleno período joanino, os cárceres cariocas estavam ocupados quase exclusivamente por negros, sobretudo escravos, seguidos pelos libertos. Os naturais da África eram encarados como a principal ameaça à ordem escravista. Praticamente não havia prisioneiros brancos¹.
Thomas Holloway reconstitui, numa breve listagem, o padrão dos castigos impostos aos presos no ano de 1820. Além dos açoites, aplicados em quantidade suficiente para colocar em risco a vida dos supliciados, alguns se viam encaminhados ao trabalho forçado na Estrada da Tijuca².
O autor esvazia ainda mais o mito de que "os negros foram bem tratados no Brasil", ao apontar que nos Estados Unidos, na mesma época, prevaleciam punições menos brutais³.
Proclamada a autonomia do país, a situação em nada se alterou. O toque de recolher implantado na capital do Império em 1825, que vigorou por décadas, tinha como finalidade a submissão da população negra. Numa flagrante violação da Constituição, que estabelecia a igualdade jurídica entre todos os cidadãos, negros e mestiços livres ficaram explicitamente sujeitos a regras supostamente formuladas para controlar os movimentos dos cativos. Apenas uma pequena minoria privilegiada se mantinha a salvo das arbitrariedades, demonstrando o entrelaçamento, constante na história brasileira, entre os preconceitos étnicos e os sócio-econômicos4.
Encontramos um quadro semelhante na Bahia da primeira metade do século XIX, agravado pelo pânico que a Revolta dos Malês (1835) gerou entre os senhores de escravos daquela província. Cativos e libertos, além de formar o grosso da massa carcerária, permaneciam, mais de uma década após a grande rebelião, oprimidos pelo toque de recolher e tolhidos em suas atividades cotidianas, especialmente se fossem africanos5.
Mary Karasch, que estudou as condições de vida da escravatura carioca, ratifica a pesquisa de Holloway no que diz respeito à imposição quase indiscriminada do açoite. A autora destaca que era possível aos senhores de escravos da cidade utilizar a máquina pública para espancar suas "propriedades"6.
O Estado monárquico, que matava numerosos escravos em suas instalações penais, chegou ao cúmulo de dar tratamento semelhante aos africanos livres, cujo "crime" era o de, depois de trazidos ilegalmente da África e subtraídos aos traficantes, não terem lugar na sociedade carioca. Mesmo protestando, permaneciam retidos no Calabouço ou na Casa de Correção, onde representavam reserva de mão de obra praticamente gratuita para as autoridades imperiais7.
Mário Maestri revela um panorama ainda mais assustador no Rio Grande do Sul, província em que as sentenças de açoite, excedendo o número de chibatadas que se verificava na Corte, se transformavam em verdadeiras execuções. As penas eram aplicadas gradualmente, e em público até meados do XIX 8.
Na segunda metade do Oitocentos, a quantidade de africanos minguou a cada ano, como resultado do fim do tráfico. A partir da Abolição, também diminuiu progressivamente o número dos que haviam passado pela experiência direta da escravidão. Porém, a difusão das teorias raciais europeias contribuiu para a consolidação do preconceito, no âmbito estatal (e por extensão nas polícias), contra os descendentes dos escravos. Retornaremos ao tema em outras postagens.
Notas:
1- Ver Thomas Holloway. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997, pp. 51/52.
2- Idem, p. 54.
3- Ibidem, p. 55.
4- Ibidem, pp. 58/59.
5- Ver João José Reis. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 495/496.
6- Mary Karasch. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 172.
7- Idem, pp. 179/180.
8- Mário Maestri. O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistência e sociedade. Porto Alegre: UFRGS, 2006, pp. 141/142.
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