sábado, 16 de junho de 2012

O mito da decência perdida

           

         A crença na existência, em certo lugar do passado, de uma sociedade isenta (ou quase) de violência e corrupção, não é exclusiva do Brasil nem da contemporaneidade.  Tampouco constitui uma opinião restrita aos conservadores.  Muitas pessoas das mais variadas idades e graus de instrução acreditam sinceramente que os crimes comuns e de colarinho branco e os escândalos sexuais que ocupam boa parcela do nosso noticiário são males progressivos, sintomas de uma crise moral que se agrava através dos anos.  Conforme as preferências de quem discursa, as origens de tal crise podem remontar ao término das presidências militares, às marés de contestação dos anos 60 ou mesmo à Proclamação da República.  Muitos julgam ainda que quanto mais recuamos na linha do tempo mais nos aproximamos de uma humanidade decorosa e até inocente.  
      Este mito frequentemente é instrumentalizado pela direita, no intuito de convencer o eleitorado a participar de uma suposta restauração da época idealizada em que ricos, remediados e pobres se submetiam   por completo à austeridade econômica, a uma moral sexual rigorosa e às autoridades que personificavam tais virtudes.  Basta recordar as gestões de Jânio Quadros e Fernando Collor para constatarmos o quanto este projeto já foi danoso ao país.  Além disto, é profundamente falacioso.  Um estudo sobre a vida social brasileira de qualquer período, sob qualquer referencial teórico, nos revelará que aqui sempre prevaleceram a violência física e psicológica, o preconceito, o roubo e a impunidade. 
          Recorro, para sustentar minha afirmação, à literatura produzida por viajantes que conheceram o Brasil nos primórdios da organização do Estado imperial.  A inglesa Maria Graham (1785-1842), por exemplo, fez duas excursões ao Brasil, entre 1821 e 1823.  Em outubro do primeiro ano, durante estadia em Salvador, verificou o quanto eram numerosos os assassinatos, em regra praticados com armas brancas.  Graham também pôde atestar o despreparo profissional e a truculência do aparato repressivo naquela cidade¹.



              Ainda na Bahia, a viajante testemunhou um malicioso golpe aplicado por alguns dos naturais da terra contra os marinheiros europeus². 


           Contratado pelo Exército Imperial, no qual foi tenente de Granadeiros Alemães, C. Schlichthorst escreveu um livro sobre o Rio de Janeiro em meados da década de 1820.  Ele ratificou as notícias de Graham sobre a frequência dos atentados a faca, acrescentando que estes crimes podiam ser cometidos por matadores de aluguel³.


         Schlichthorst deplorou a desonestidade que predominava na rede hoteleira, bem como a falta de higiene que afligia a capital do Império de maneira geral4.


        O militar notou que a sociedade carioca passava longe de qualquer puritanismo, sendo a prostituição de luxo uma atividade corriqueira e que gozava de bastante tolerância5.  


        O superfaturamento de fardas e armas no incipiente Exército, com grande dano às finanças públicas, não escapou ao olhar de Schlichthorst6: 


         A agiotagem, bem difundida, tinha como alvo os oficiais estrangeiros recrutados pela monarquia7:  


    Os colonos europeus, por sua vez, eram vítimas dos empregados que deveriam promover adequadamente seu estabelecimento no país8.


      O alto grau de corrupção do funcionalismo no Primeiro Reinado foi apontado por Robert Walsh (1772-1852), capelão que veio ao Brasil na comitiva de Lord Strangford, em 1828.  Os guardas da Alfândega, segundo o religioso, enriqueciam ilicitamente de várias formas, entre elas os furtos, nos quais contavam com uma rede de cúmplices9.


         Os magistrados brasileiros causaram a Walsh uma impressão talvez pior.  O recebimento de propinas convivia sem problemas com a ostentação pública de um padrão de vida incompatível com seus salários10.


        Os autores que apresentei não foram malévolos detratores do Brasil.  Pelo contrário: em suas obras, há numerosos relatos de experiências prazerosas, bem como elogios ao país e a seus habitantes, desde os altos dirigentes até os escravos nas piores condições materiais.
     Antes que algum demagogo de plantão me acuse de assumir o papel de advogado de mensaleiros, também não pretendo fazer uma "banalização do mal".  A corrupção e a impunidade, sem dúvida, são duas das principais mazelas do país.  Entretanto, o combate a elas não passa pelo resgate de uma inexistente Idade do Ouro, por meio da sujeição de todo o povo a uma presumida elite moralizadora.
              

Notas:
1- Maria Graham.  Diário de uma viagem ao Brasil.  Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdUSP, 1990, pp. 173/174.
2- Idem, p. 184.
3- C. Schlichthorst.  O Rio de Janeiro como é (1824-1826).  Brasília: Senado Federal, 2000, p. 31.
4- Idem, p. 73.
5- Ibidem, pp. 128/129.
6- Ibidem, p. 273.
7- Ibidem, p. 283.
8- Ibidem, p. 293.
9- Robert Walsh.  Notícias do Brasil.  Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdUSP, 1985, pp. 190/191.
10- Idem, p. 206.











5 comentários:

  1. A corrupção e bandidagem humanas foram as mesmas desde sempre, e serão as mesmas até acabarmos. A diferença é como se enxerga isso; antes, bandidos eram mal vistos e odiados, hoje querem fazer com que pareçam vítimas inocentes do sistema.

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  2. Note que os bandidos que expus na matéria, em sua maioria, eram pessoas de projeção social mediana ou alta. Não creio que fossem mais malvistos do que, na década de 90, um Nicolau Neto.

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  3. Me referi também aos comportamentos deles, que eram malvistos em suas época também, só que velados (e negados quando descobertos).

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  4. Ainda hoje os criminosos, tanto assaltantes a mão armada quanto colarinhos brancos, tendem a negar o que fazem. Alguém se gabou de estar na folha de pagamento do Carlinhos Cachoeira?

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  5. Steven Pinker em seu ultimo livro, The Better Angles of our Nature - The Decline of Violence in History and its Causes, argumenta por meio de dados estatísticos, que embora as pessoas tenham a sensação de que a violência está aumentando, estamos vivendo a época mais pacífica da nossa existência.

    http://www.ted.com/talks/steven_pinker_on_the_myth_of_violence.html

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