As informações que hoje ponho em evidência ferem, em graus variados, três elementos da mitologia sócio-histórica do país: o Império enquanto Idade de Ouro, o brasileiro como homem pacífico ou cordial e a democracia racial. Vasculhando documentos oficiais da província de Santa Catarina, notamos que ao longo de mais de duas décadas as populações indígenas locais foram sistematicamente representadas, pelos titulares das administrações que se sucediam, como verdadeiros inimigos do Estado. Esta atitude chega a formar um contraste com o que se verificou em outras regiões do país, nas quais o emprego da violência contra os índios que resistiam à política dos aldeamentos convivia com o apelo à catequese e um discurso voltado para a integração, ainda que através do trabalho subalterno e mal remunerado. Na escala de valores que emerge dos relatórios catarinenses, o índio não passa de um empecilho à expansão da lavoura.
Presidente de
Santa Catarina em 1836, José Mariano de Albuquerque Cavalcanti incumbiu um
major da Guarda Nacional de combater os “gentios ferozes” do distrito de
Itajaí, missão que acabaria por ser abortada:
Sucessor
imediato de Albuquerque Cavalcanti, José Joaquim Machado de Oliveira, em seu
relatório de 1837, declarou que nada esperava da catequese, diante da natureza dos
hipotéticos catecúmenos. Para os
conflitos entre índios e súditos do Império, Oliveira tinha como solução “as
correrias contra estas hordas bárbaras”:
Ocupando
a presidência no ano de 1838, o brigadeiro José Carlos Pardal explicitou a orientação
estatal de subtrair as terras do sertão “ao domínio inútil de danoso dos
selvagens”, entregando-as a lavradores sem terra e colonos imigrados para a
província:
O
mesmo Pardal, em 1839, fez menção a um choque entre índios e colonos italianos,
se empenhando em apresentar a ação dos primeiros como uma agressão unilateral e
covarde. No mesmo texto, expôs sua
intenção de expulsar a população indígena assinalada entre os distritos de
Imaruí e Lages. Sua filosofia era clara:
o gentio “infesta”, o colono “povoa”:
Em
1840, o brigadeiro Francisco Soares de Andréa, que já se distinguira pelas chacinas praticadas na repressão à Cabanagem, na província do Pará,
projetava a construção de uma linha de fortificações em Santa Catarina,
contra os Botocudos:
Outro
militar, o marechal de campo Antero José Ferreira de Brito, presidente em 1843,
festejou a substituição, no vale do rio Itajaí, do “gentio bugre” por colonos
que se dedicavam à agricultura:
No
ano seguinte, Brito até admitia a possibilidade de integração do índio à
sociedade local, mas sem desprezar a outra alternativa, a aniquilação:
Ainda
na presidência em 1846, Antero de Brito não escondia que a população indígena
era vista pela administração como a principal ameaça à “tranquilidade pública”,
e sua eventual invisibilidade um fator de sossego:
Na
temporada de 1847, a
Assembleia Provincial tomou ciência de que o destacamento de Pedestres em
operação no distrito de Lages continuava a realizar “expedições e picadas com
bom resultado”, já que os índios, embora numerosos, não se arriscavam ao
enfrentamento com homens munidos de armas de fogo:
Em
1849, o doutor Severo Amorim do Vale, tendo em vista outros embates entre
índios e não-indios, nos quais os primeiros, como de hábito, eram acusados de
matar pessoas indefesas de maneira indiscriminada, informou que um
tenente-coronel fora escalado para exercer “a vigilância contra os selvagens”
em todo o município de São Francisco:
Quando
dissertou, em 1850, sobre as condições em que se encontravam colônias
estabelecidas em anos anteriores, João José Coutinho fez registro das
reivindicações, por parte dos colonos, de que ali fossem instalados
destacamentos, no propósito de repelir os “gentios” ou “bugres”. Percebe-se, portanto, que, não importando a
antiguidade ou a extensão de sua presença, os índios continuavam sendo vistos
como invasores.
Coutinho,
ao elaborar um panorama histórico das diversas colônias europeias no relatório de 1851,
atribui culpa aos “gentios bravios” pela relutância de algumas famílias alemãs em se estabelecerem
nas terras que lhes haviam sido destinadas pelo governo no final da década de
1820:
Em
1853, o mesmo presidente celebrou o fato de que, sendo a casa do diretor da
colônia de Blumenau atacada por índios, estes últimos tivessem fugido sem que
houvesse baixas entre os colonos. A
localidade fora guarnecida pela presidência com uma guarda de Pedestres.
Ainda
no cargo em 1856, João Coutinho colocaria outra vez em relevo, como problema
de segurança pública, os choques entre indígenas e colonos. Mantendo conformidade com o padrão deste tipo
de narrativa, os “bugres” surgem no relatório, como sempre, matando, fugindo e
sendo objeto de buscas pela tropa:
A
partir do final da década de 1850, os índios praticamente desapareceram dos
relatórios catarinenses. Levando em
conta a assiduidade das notas anteriores, não creio que o caso seja de negligência. É bem possível que nas antigas áreas de
colonização portuguesa e nos arredores das novas colônias de alemães e
italianos tenha ocorrido o processo que em fins do século XX seria denominado
“faxina étnica”, com o massacre de uma parte dos povos indígenas e a fuga dos
remanescentes para o oeste, ou para as províncias vizinhas do Paraná e do Rio
Grande do Sul.
Com
a palavra, os especialistas que queiram se manifestar...
Excelente o seu blog, meus parabéns Gustavo Moreira.
ResponderExcluirPercebo o carinho com que trata o teor de cada postagem.
Deixo o espaço nos blogs que administro:
Documentando a Ditadura: http://ditaduraverdadesomitidas.blogspot.com/ e,
Consciência Política Razão Social: http://conscienciapoliticarazaosocial.blogspot.com/
à sua disposição, caso queira divulgar ainda mais seu trabalho.
Esses dois blogs que apresento, principalmente o Documentando a Ditadura, foram criados com objetivo único de servir como ferramentas de pesquisa, na tentativa de resgatar nossa história e colaborar com o social.
Deixo também um convite para uma visita no meu blog pessoal: http://dagmarvulpi.blogspot.com/ , onde trato de assuntos variados.
Com um fraterno abraço.
Dag Vulpi
E-mail: Dagmar.vulpi@gmail.com