segunda-feira, 2 de abril de 2012

Algumas considerações sobre cotas



            Frequentemente recebo críticas nas redes sociais por me colocar a favor da política de cotas.  Seria ingenuidade esperar muitos afagos virtuais nesta questão, uma das mais polêmicas da política nacional.  Na medida em que a posse de computadores domésticos ainda não se generalizou por completo no Brasil, uma parcela bastante expressiva dos internautas pertence a segmentos sociais e ideológicos que se veem como lesados por qualquer modalidade de ação afirmativa que eventualmente venha a ser implantada.
Escrevo este artigo com um propósito definido: deixar bem marcadas minhas posições sobre o tema, para não ser atacado por opiniões erroneamente atribuídas a mim. A estratégia pode falhar, sem dúvida, mas no mínimo poderei, de pronto, advertir os críticos para que leiam o que realmente afirmei antes de “refutar” o que nunca foi dito.
Entendo que não existe meritocracia real no capitalismo, fato que se torna mais nítido em sociedades extremamente desiguais, como a brasileira.  Um exame vestibular, em nosso país, se assemelha a uma corrida de oitocentos metros rasos na qual alguns saem da linha de partida, outros do marco 400 e uns poucos só precisam percorrer os últimos cinquenta metros.  Fico estarrecido quando escuto, e não são raras estas ocasiões, alguém declarar que cotas discriminam os mais inteligentes.  É difícil conceber prova maior de falta de inteligência.
Considerando as disparidades de infra-estrutura e qualidade de ensino entre os colégios particulares de ponta e as “boates” que os pais da classe C conseguem pagar, ou as que se verificam entre um punhado de instituições federais de excelência e a média das demais escolas públicas, torna-se ridículo falar em igualdade de oportunidades.  Os adversários das cotas na vertente liberal, sem poder mascarar esta realidade, alegam que ao invés de “discriminar” os governos deveriam elevar o nível das escolas sob sua gestão.  Só se esquecem muito oportunamente de que, ainda que ocorram avanços pontuais em determinados estados ou municípios, o ensino público jamais será a prioridade número um em uma sociedade oligárquica.  Estarão dispostos, então, a aceitar um processo de ampla transformação social, em todas as instâncias? 
Mesmo que, a despeito da correlação de forças políticas que prevalece no Brasil contemporâneo, 20 ou 25% dos recursos públicos fossem investidos na educação, e que os desvios de verbas e esquemas de superfaturamento nesta área sofressem repressão implacável, sendo tipificados como crime hediondo, muitos outros fatores continuariam a influir negativamente no desempenho escolar de milhões de brasileiros. Entre eles podemos citar a ausência de uma política de habitação que mereça este nome, a distribuição também desequilibrada dos serviços de segurança e o acesso diferenciado, segundo o poder aquisitivo, aos conhecimentos de informática e ao aprendizado de idiomas estrangeiros.
Apelam também os elitistas, em seu afã de assegurar a concentração do saber e da riqueza, à exaltação dos indivíduos excepcionais.  Constroem sofismas no seguinte estilo: “se Machado de Assis nasceu no morro, estudava à noite acendendo tocos de vela e chegou à Academia Brasileira de Letras, todo pobre que se empenha pode chegar ao topo”.  Eis um discurso mal-intencionado e hipócrita.  É extremamente duvidoso, para dizermos o mínimo, que as classes médias e altas, com a conformação ideológica que possuem atualmente, na maioria dos casos, admitam sem conflito a ascensão de todas as pessoas que, “vindas de baixo”, exibam talento, ou que a economia esteja organizada no sentido de lhes dar ocupações à altura de suas capacidades.  Vários mecanismos de exclusão, ausentes das leis escritas, mas na prática bastante eficazes, servem para manter na subalternidade os que não dispõem das relações sociais que abrem as melhores portas.  Trata-se também de uma visão filosoficamente perversa: adotá-la representa admitir que somente uma minoria dos pobres, composta pelos mais inteligentes e aplicados, tem o direito (ou privilégio) de realizar estudos superiores, cabendo aos “medianos” os trabalhos braçais.  Entretanto, a expectativa é outra a respeito dos pouco talentosos, porém nascidos em famílias de bom poder aquisitivo: presume-se que devem se graduar, ainda que nas “boates” de terceiro grau.
Outro argumento anticotas, possivelmente o mais utilizado, é o da suposta inconstitucionalidade desta política, muitas vezes invocada por gente que jamais pisou em uma faculdade de Direito, mas se investe de plena autoridade para dar este tipo de parecer.  Não vemos, porém, estes paladinos da Carta Magna questionarem, por exemplo, a validade da lei que estabelece prisão especial para pessoas com nível superior, um privilégio concedido a quem, ao menos em tese, já desfruta de uma situação vantajosa. A alegação de que as cotas incluem determinados segmentos excluindo outros também é improcedente.  Na verdade, elas favorecem, pelo menos no que se refere ao ensino superior, a expansão do número de vagas.  Ainda que o sistema não tenha se generalizado por todo o território nacional, é certo que a quase duplicação das vagas nas universidades públicas, ocorrida ao longo das gestões de Lula, não se deveu à mera generosidade do governo federal.    
Não sou (felizmente) um Francisco Campos, e jamais escreverei uma Constituição sozinho.  Porém, se a legislação brasileira, em cenário hipotético, reproduzisse fielmente as minhas opiniões, haveria um sistema misto.  Para o ingresso no serviço público e nas instituições de ensino superior seriam adotadas as cotas sociais.  Nas contratações para o setor privado e demais situações em que o arbítrio individual constitui elemento de peso, cotas étnicas.
É indiscutível que os brancos nascidos em condições de pobreza ou miséria, mesmo que estejam, possivelmente, menos sujeitos do que os negros às agressões gratuitas por parte de agentes do Estado, sofrem na mesma proporção com a dificuldade em construir uma formação intelectual que lhes permita chegar à universidade ou disputar empregos fora das atividades de pior remuneração.  De maneira desonesta, muitos dos panfletários anticotas “denunciam” que elas marginalizam os brancos pobres, quando muitas vezes as instituições que adotam as cotas reservam percentuais aos estudantes originários da rede pública e aos que comprovam situação econômica desfavorável.  Tal é o caso da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que contempla em seu programa de ação afirmativa ex-alunos das escolas públicas, negros, índios, deficientes e filhos de policiais, bombeiros e agentes penitenciários mortos ou incapacitados em razão do serviço.  Encontramos idêntica filosofia em entidades como o Educafro, cuja proposta é a educação para afrodescendentes e carentes.
Concordo com os que pensam que não há razão para se limitar as cotas no serviço público e nos vestibulares aos negros, visto que, quando as marcações de um cartão de respostas são comparadas pelo computador com o gabarito da prova, a máquina ignora a autodefinição étnica do candidato.  O mesmo se dá com a banca encarregada de avaliar uma prova discursiva: para ela, o postulante à vaga se apresenta apenas como um número etiquetado, sem cor, classe, religião ou orientação sexual.
Quanto às empresas privadas, a partir de um determinado número de empregados, julgo que cotas étnicas nos processos de contratação constituiriam um excelente mecanismo contra os efeitos do preconceito racial; se um homem negro, nordestino, pobre e morador de favela prestar concurso para exercer a função de escriturário do Banco do Brasil em Porto Alegre ou São Paulo e passar dentro das vagas, tomará posse, salvo gravíssimo acidente.  O mesmo não ocorre na livre iniciativa: ainda que o mesmo indivíduo demonstre uma capacidade intelectual e profissional acima da média, pode ser simplesmente descartado com uma breve comunicação: “O Sr. foi contra-indicado”.
Não tenho a vã ilusão de que cotas, ou quaisquer outras medidas de ação afirmativa, eliminem o racismo.  O mero fato de vermos mais negros e índios estudando em universidades e exercendo cargos de alta qualificação não dissolve de imediato uma hierarquia étnica construída no decorrer de trezentos anos de colonização.  Sobre isto, basta observar o exemplo cubano: o governo revolucionário, no decorrer de meio século, incluiu virtualmente todos os estudantes nas mesmas escolas, e todos os pacientes nos mesmos hospitais e programas de saúde, mas as tensões étnicas aparentemente persistem naquela sociedade.  É certo, igualmente, que os empregadores que porventura sejam forçados a contratar negros contra sua vontade admitirão os negros que, pela aparência física, gostos, filiação religiosa e outras características pessoais mais se aproximem dos seus padrões.  
Também não acredito que as cotas sejam a solução definitiva para o problema da pobreza.  Elas ampliam oportunidades para os pobres que conseguem se alimentar bem e frequentar normalmente a escola.  Os segmentos que alguns denominam “excluídos” permanecem na miséria e na falta de perspectivas. 
Entretanto, considero extremamente salutar que, a cada geração, centenas de milhares de filhos de operários urbanos e rurais, pescadores, estivadores, diaristas, camelôs, biscateiros, balconistas do comércio e office boys obtenham acesso a profissões e níveis de renda típicos da classe média.  Mais do que isto é praticamente impossível realizar no capitalismo, e em particular no Brasil, país em que os conservadores recorrem a retóricas apocalípticas diante de qualquer mudança no ordenamento jurídico, mesmo que mínima, na direção da igualdade.               

5 comentários:

  1. Fantástico artigo meu amigo.
    Penso o mesmo a respeito do tema acima discutido. Proponho que leia alguns artigo produzidos por mim e talvez possamos trocar algumas ideias.
    http://konteste.blogspot.com

    ResponderExcluir
  2. A desigualdade de oportunidades no exame vestibular apenas reflete a desigualdade social brasileira, que condena os jovens pobres a estudar em escolas públicas ruins, e a prevalência de afro-descendentes no universo de jovens pobres reflete a circunstância histórica da escravidão. Isso é injusto? É. Mas é uma injustiça que não se aplica a pessoas físicas, mas a grupos, e tem origem não em danos infligidos por outras pessoas físicas ou pelo Estado, mas em circunstâncias históricas causadas pelas ações de milhões de pessoas em todo o mundo. A História não é justa, nem se conserta - no máximo, se escreve. Não vejo nenhum sentido na afirmação de que os negros necessitam uma reparação pelas injustiças que sofreram no passado, pois uma raça não é uma pessoa jurídica, nem uma associação, nem uma nacionalidade; por conseguinte, uma raça não pode ser credora ou devedora de indenizações. Não há sequer definição científica do que seja uma raça!

    A idéia de que os indivíduos em desvantagem no exame vestibular merecem uma compensação, tal como os corredores que largam mais atrás na competição, assemelha-se a argumentar: não é justo que umas pessoas estejam doentes e tenham febre enquanto outras estão sadias; então, devemos fazer termômetros especiais para os febris, com uma graduação diferente de modo a mostrar que eles não têm febre. Desculpe a minha burrice, mas não seria solução melhor curar a gripe? No caso brasileiro, melhorar o nível da educação pública, ao invés de inventar cotas ou proclamar que escrever errado é válido?

    A idéia de cotas surgiu nos EUA dos anos sessenta. Nessa época, as universidades eram livres para selecionar seus alunos (como o são até hoje) e usavam dessa prerrogativa para barrar os candidatos negros, embora eles fossem perfeitamente aptos a ingressar na universidade. NESSE CONTEXTO, O SISTEMA DE COTAS FAZIA SENTIDO. No contexto brasileiro não faz sentido nenhum, pois o exame vestibular não permite discriminação, já que a raça do candidato não é identificada para aquele que vai corrigir a prova, seja homem ou computador. É apenas uma demagogia. O certo seria implantar o ensino pago nas universidades públicas, tal como é feito nos EUA, e conceder bolsas de estudo a quem não puder pagar. Dessa forma, os alunos ricos que atualmente imperam nas instituições públicas se mudarão para instituições privadas, deixando as públicas para os pobres, que assim terão uma real chance de ascenção social.

    ResponderExcluir
  3. Mundim, você "refuta" (veja o início do post) coisas que eu não disse. Em primeiro lugar, em nenhum momento emprego o conceito de raça. Tudo bem, vou encarar como um estímulo a novas explicações, forçosamente longas. Em segundo, quando defendo cotas para negros, não é pelo que sofreram "no passado" (ainda que em outros posts eu toque na questão) e sim pelas desvantagens concretas que os negros têm hoje, em especial na iniciativa privada. Em terceiro (finalmente se reportando a algo que eu realmente disse), você faz alusão à desejável melhora no ensino público brasileiro, mas não responde à minha interrogação: como conseguiremos esta proeza com um Congresso cheio de lobistas do ensino particular? De onde sairá o dinheiro, quando uma parte gigantesca do orçamento, não importando quem ocupe o Planalto, sempre se destina a "domesticar" o PMDB, eterno fiel da balança na política nacional?
    Piorando ainda mais, você parece também não ter lido que, no que diz respeito ao vestibular, sou partidário das cotas sociais,e me "refuta" com o próprio argumento que usei para estabelecer a distinção. Sobre a disponibilização de dinheiro público para pagar mensalidades em universidades privadas, considere o nível de corrupção que impera no país, o que ocorre na prática nas relações do Estado com ONGs e empresas de terceirização e avalie honestamente se existe alguma viabilidade na proposta. Dentro dos interesses dos estudantes e da maior parte da sociedade, é lógico.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Concordo que me ative em particular às cotas raciais, mas consideram incoerentes, também, as outras cotas ditas "socais". Não vejo nenhuma lógica em se dar uma vaga a um candidato menos capacitado em detrimento de outro candidato mais capacitado. Na melhor das hipóteses, esse método vai afastar os candidatos mais ricos das faculdades públicas e abrir mais vagas para os candidatos pobres, mas o preço a ser pago será a queda do nível de ensino, pois não se pode ter ensino bom com alunos ruins. Há uma coisa pior do que ser injusto: é ser ilógico. Pois o injusto pode ser assim definido segundo critérios muito subjetivos, mas o ilógico assim o é segundo critérios bem objetivos e palpáveis, que podem acarretar conseqüências igualmente objetivas e palpáveis, como a queda do nível do ensino, má fama para a instituição e consequente rejeição pelo mercado de trabalho dos alunos formados nela. Os alunos ricos - e que puderem pagar - se mudarão para as faculdades privadas, que sob o peso da demanda se tornarão ainda mais caras. Às universidades privadas caberá, então, a tarefa de formar profissionais bem qualificados para empregos bem pagos. E às universidades públicas caberá a função de prestar-se à demagogia das autoridades. Hoje em dia o ingresso em uma universidade pública ainda é um dos poucos meios de ascenção social para um estudante pobre, em um futuro breve pode ser que nem isso haja mais.

      Acredito que a única solução viável é fazer o que fizeram os países emergentes da Ásia nos anos sessenta: investiram muito, sim, mas na escola básica, e não nas universidades, e elevaram os níveis salariais dos professores de modo a atrair profissionais qualificados para essa profissão (na Coréia do Sul, um professor de ensino médio ganha tanto quanto o mesmo professor nos EUA). Mas tanto uma quanto outra providência só surtem efeitos dentro de uns 20 anos no mínimo, não dá para colher os frutos na próxima campanha eleitoral, por isso eu duvido muito que façam o mesmo por aqui.

      Excluir
  4. Bem, Mundim, em primeiro lugar preciso assinalar o progresso, para alguém tão conservador quanto você, que é admitir, quase explicitamente, que a sociedade brasileira é bastante injusta, quando muitos ainda invocam uma meritocracia que só existe no mundo dos sonhos.
    Mas quanto às suas hipóteses, devo lembrá-lo de que mais de trinta universidades brasileiras já adotam alguma modalidade de ação afirmativa, em certos casos há quase uma década, sem que se verifique a presumida "evasão dos ricos". Considere também que, pela correlação de forças políticas que prevalece no Brasil, a opinião contrária às cotas predomina por larga margem no universo editorial, nisto incluídos jornais, revistas, obras acadêmicas e vulgarizações como as de Ali Kamel. No final das contas, a palavra final neste tipo de debate sempre cabe a um Diogo Mainardi ou a um Demétrio Magnoli. Desta maneira, se a aplicação do sistema resultasse em qualquer tipo de catástrofe, já teríamos centenas de teses, dissertações e publicações panfletárias afirmando triunfalmente que "cotas não funcionam".
    Na verdade, os poucos dados que vêm a público parecem demonstrar que o aluno cotista, em média, se esforça mais do que os outros no sentido de superar suas defasagens, o que é plenamente justificável. Quem tem poucas oportunidades sabe que deve aproveitá-las ou será forçado a seguir um destino convencional. Isto tem reduzido, até hoje, os argumentos anticotas ao campo da retórica.
    A visão de que o Estado deve se retirar do ensino superior, ou pelo menos abandoná-lo enquanto meta primordial, também me parece míope. Veja, quando a esta questão, as estatísticas disponíveis sobre os pífios investimentos que o setor privado faz em pesquisa científica no país.
    Obrigado pela atenção.

    ResponderExcluir