“Nosso senhor soberano, o rei,
nos outorgou, por sua graça e bondade reais, a província de Carolina, com a
totalidade dos direitos de regalia, propriedades, jurisdições e privilégios de
um condado palatino tão extenso e tão vasto quanto aquele de Durham, assim como
outros importantes privilégios; para melhor organizar o governo deste país e determinar os interesses dos senhores proprietários dentro
da igualdade, mas sem confusão; para tornar o governo desta
província tão conforme quanto possível à monarquia sob a qual nós vivemos e da
qual ela faz parte; e para que evitemos edificar
uma democracia numerosa; nós, os senhores e proprietários da dita
província, concordamos em instituir perpetuamente entre nós a forma seguinte de
governo, que constituirá a obrigação mais restrita que possa ser concebida para
nós, nossos herdeiros e nossos sucessores”.
Inicio
esta postagem com uma citação que é o preâmbulo das Constituições
Fundamentais da Carolina, elaboradas no início da década de 1670 por John
Locke (1632-1704), que detinha então, nomeado pelo Lorde Ashley, presidente da
Câmara dos Lordes britânica, o cargo de secretário do Conselho do Comércio e da
Agricultura. Basta um olhar para
identificarmos a perspectiva elitizante que norteou o legislador em sua tarefa. Entre muitos artigos das Constituições
que estabelecem exclusões e privilégios, criando categorias diferenciadas entre
os homens livres, Locke firma, como precondição para o exercício dos direitos
políticos, a propriedade fundiária.
Para ele, um indivíduo só poderia integrar o parlamento distrital se
detivesse, no mínimo, quinhentos acres de terra no respectivo distrito[1].
Não
promoverei o julgamento virtual de Locke, que nas mesmas páginas, aliás,
defendeu a autoridade ilimitada dos homens livres sobre seus escravos,
independentemente da confissão religiosa destes últimos[2]. Qualquer graduando de primeiro período, com
razão, protestaria contra o grave anacronismo.
O que me faz recorrer a um texto tão antigo é a longevidade de
determinadas ideias. Sendo ponto
pacífico que muitos liberais, senão todos, veem em John Locke um respeitável
precursor, seguirei um pouco as linhagens que formam sua descendência
ideológica. Durante séculos, tanto
liberais quanto conservadores adeptos do liberalismo econômico se opuseram não
apenas à representação dos não-proprietários no governo, como também à extensão
do direito de voto a segmentos numerosos, por vezes majoritários, das
populações europeias e americanas.
Neste
ponto, há uma nítida continuidade entre John Locke e Edmund Burke (1729-1797),
pensador que, embora seja com mais frequência associado ao ideário conservador,
representou o partido whig (liberal) no Parlamento britânico. Segundo Burke, trabalhadores como cabeleireiros
e operários fabricantes de velas, além de outros empregados em atividades “mais
servis”, não deveriam participar do governo, nem como indivíduos nem enquanto
classe. Para ele, era extremamente
necessário assegurar a transmissão hereditária da propriedade, motivo pelo qual
enaltecia a Câmara dos Lordes, de composição exclusivamente aristocrática, e a
predominância da “riqueza de família e da distinção” também na Câmara dos
Comuns. A concessão de direitos
políticos a muitos, nesta visão, resultaria na pilhagem dos ricos. Burke se
colocava decididamente a favor da manutenção dos privilégios de nascimento, que
considerava ameaçados por “janotas da filosofia[3]”.
O
suíço-francês Benjamin Constant (1767-1830), um dos mais influentes teóricos
liberais da primeira metade do século XIX e principal inspirador da
Constituição brasileira de 1824, esposava opiniões semelhantes às de Locke e
Burke. De acordo com Constant, além da
naturalidade e da maioridade, outra exigência seria indispensável para o
exercício dos direitos políticos: a propriedade, aqui compreendida como “a soma
suficiente [em renda territorial] para existir durante o ano sem ser obrigado a
trabalhar para outrem[4]”. Para o autor, a realização de estudos
superiores não autorizava, por si mesma, a participação eleitoral. Recordando a Revolução Francesa, na qual
certas categorias de intelectuais teriam adotado “opiniões mais exageradas”,
Constant julgava que somente os profissionais liberais credenciados “pelo
sucesso e pela fortuna” fariam jus à plena cidadania[5].
Mesmo
John Stuart Mill (1806-1873), que empreendeu corajosa campanha em prol do voto
feminino (sendo derrotado no Parlamento em 1867), não conseguiu romper com o
forte preconceito liberal contra o sufrágio universal. Além de considerar inadmissível que
analfabetos votassem, Mill advogava a interdição deste direito aos indivíduos
que não pagassem impostos. Seria uma
injustiça, conforme o autor, que dispusessem do dinheiro alheio através de seus
votos. Como justificativa, apontava
para o sistema tributário de algumas cidades dos Estados Unidos, nas quais
acreditava existir uma sobrecarga contra as “classes mais abastadas[6]”. Mill se mostra mais explicitamente elitista
ao defender o voto plural: para ele, banqueiros, negociantes e industriais, bem
como aqueles que tivessem passado “por qualquer escola na qual se ensinam os
ramos mais elevados do conhecimento”, eram em regra mais inteligentes do que o
trabalhador comum, devendo seu voto ser multiplicado por dois (ou mais)[7].
Em
pleno século XX, Friedrich Hayek (1899-1992) ainda se mostraria nostálgico das
antigas restrições eleitorais. O
economista austríaco via a interferência das massas na política como um fator
de crise da doutrina liberal. Hayek
partia do pressuposto de que o exercício da liberdade não estava
obrigatoriamente vinculado ao dos direitos políticos, opinião que exprimiu em
passagem de reacionarismo extremo:
É útil recordar que, no país europeu em que a democracia é
mais antiga e bem sucedida, a Suíça, as mulheres ainda são excluídas do voto e,
pelo que parece, com a aprovação da maior parte delas. Também parece possível que, numa situação
primitiva, um sufrágio limitado, por exemplo, somente aos proprietários de
terra consiga formar um Parlamento tão independente do governo que possa
controlá-lo de maneira direta[8].
A ojeriza dos liberais à possibilidade de
implantação de uma democracia popular, naturalmente, não ficou restrita ao
campo da teoria. Enquanto puderam, os governos burgueses e
aristocrático-burgueses mantiveram trabalhadores manuais, indivíduos
não-proprietários e outras categorias socialmente desfavorecidas fora das
listas eleitorais. No início da década de 1830, quando as organizações
conhecidas como “uniões políticas” sacudiam a Inglaterra na luta pela ampliação
do eleitorado, os dirigentes whigs e tories (conservadores) uniram forças para
promover o que Thompson interpretou como o “acomodamento entre a riqueza
fundiária e a riqueza industrial, entre o privilégio e o dinheiro”. Um dos
principais líderes liberais, o primeiro-ministro Grey, declarou à Câmara, em
novembro de 1831, que “(...) não existe ninguém mais decidido que eu contra
parlamentos anuais, sufrágio universal e voto secreto. Meu objetivo é não
favorecer, mas por um fim a tais esperanças e projetos”. Antes de levar ao Parlamento
a Lei da Reforma de 1832, o gabinete ministerial analisou relatórios sobre os
efeitos do estabelecimento do pretendido limite de renda de dez libras para o
acesso à condição de eleitor. A constatação de que muito poucos operários
receberiam o direito de voto tranquilizou o governo, que já estudava a exclusão
dos cidadãos com renda abaixo de quinze libras[9].
Na França, onde o sistema censitário foi
substituído pelo sufrágio universal em 1848[10],
a mobilização direitista iniciada no ano seguinte conduziria a terríveis
retrocessos. Em 31 de maio de 1850, promulgou-se uma lei que voltava a
restringir o eleitorado, impondo como pré-requisitos para o voto o pagamento de
uma taxa, a inexistência de qualquer condenação na Justiça e três anos
consecutivos de residência. Desta forma, ficavam excluídos os muito pobres
(definitivamente impossibilitados de pagar a taxa), os numerosos populares
envolvidos em incidentes com os guardas florestais e os migrantes e
desempregados, levados em sua busca por trabalho a errar de cidade em cidade. O
número de eleitores, então, caiu de 9,6 para 6,8 milhões. Não casualmente, oito
dias depois também foi promulgada uma lei de imprensa que aumentava o valor do
selo e da fiança, atingindo em cheio os jornalistas pobres, sem recursos para
cumprir estas exigências[11].
Nos Estados Unidos, país em que o princípio da
restrição censitária generalizada não entusiasmou a parcela mais expressiva dos
grupos dirigentes, o sistema de exclusões adquiriu outros contornos,
manifestando-se através da interdição do voto dos negros, ou, no mínimo, pela
criação de barreiras legais que tornavam difícil o exercício deste direito por
parte dos descendentes de escravos. Vitoriosos na Convenção de 1821, os
conservadores chefiados por Martin Van Buren se aliaram aos democratas liberais
para condicionar o voto negro à comprovação de um patrimônio imobiliário de 250
dólares, enquanto todos os homens brancos eram admitidos como eleitores. Por
outro lado, os “van-burenitas”, apelidados de bucktails (cartolas), derrotaram,
na mesma Convenção, a tese da eleição popular dos funcionários do governo[12].
Como sabemos, políticas tipicamente liberais
vigoraram também no Brasil: a Constituição de 1824 estabeleceu o voto
censitário, que prevaleceu durante todo o período monárquico, e vetou a
participação dos libertos nas eleições de segundo grau. Desta maneira, além das
restrições de renda impostas ao conjunto da população, uma parte dos cidadãos
de origem africana era permanentemente impedida, por critério de nascimento, de
se eleger ou mesmo votar para deputado e senador.
Fatos antigos sepultados pelo aperfeiçoamento da
democracia no século XX, talvez me digam alguns. Investiguemos um pouco mais. O
voto plural sobreviveu, na Inglaterra, às duas guerras mundiais. Somente em
1948 seria abolido o sistema, que ainda conferia a cerca de meio milhão de
pessoas, entre intelectuais e homens de negócios, um segundo voto[13].
Surpreendentemente, a fórmula “uma cabeça, um voto” levaria ainda mais tempo
para se tornar realidade em todos os estados norte-americanos. No começo do
século XX, o voto negro estava virtualmente eliminado em todo o Sul. Os
legisladores da Louisiana, por exemplo, determinaram engenhosamente, em 1898,
que seus concidadãos estariam dispensados da prova de alfabetização se tivessem
ao menos um avô que exercesse o direito de voto antes de 1867; na prática,
quase todos os brancos se tornavam eleitores, ocorrendo o oposto com os negros.
As leis que conferiam direitos de cidadania, na maioria dos estados, aos
imigrantes interessados em se naturalizar, também passaram por severo ataque na
mesma época. O processo fez com que, nas eleições de 1928, todos os
não-americanos ficassem excluídos[14]
. Foi necessária a intervenção da Suprema Corte para que, em 1966, houvesse a
declaração de inconstitucionalidade das leis que exigiam dos eleitores a
alfabetização e o pagamento do imposto eleitoral. Seis anos mais tarde, caía a
lei texana que impunha, como condição para a elegibilidade, o recolhimento de
uma soma proporcional à importância do cargo[15].
Apesar deste histórico nada recomendável, a direita
contemporânea tenta nos apresentar o liberalismo enquanto representação mais
pura da democracia, quando não o confunde com a própria democracia. Mentira e manipulação, como sempre. Todo progresso social e político, ainda que
parcial e inseguro, resulta das lutas dos trabalhadores.
[1] Ver John Locke. Segundo tratado sobre o governo
civil e outros escritos: ensaio sobre a origem, os limites e os fins
verdadeiros do governo civil.
Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis:
Vozes, 2006, p. 308.
[2] Idem, p.
315.
[3] Cf. Edmund Burke. Reflexões sobre a revolução em
França. Brasília: UnB, 1997, pp. 81
a 83.
[4]
Ver Benjamin Constant. Escritos de
política. São Paulo: Martins
Fontes, 2005, pp. 56 a 58.
[5]
Idem, pp. 62/63.
[6] Ver John Stuart Mill. Considerações sobre o governo
representativo. São Paulo: Escala,
2006, pp. 138/139.
[7]
Idem, p. 144.
[8]
Apud Domenico Losurdo. Democracia ou
bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: UFRJ; São Paulo: Unesp,
2004, pp. 262/263.
[9] Cf. E. P. Thompson. A formação da classe operária inglesa, vol III, A força dos
trabalhadores.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, pp. 412 a 425.
[10] Ver Maurice
Agulhon. 1848, o aprendizado da
República. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1991, p. 146.
[11]
Idem, p. 151.
[12] Ver Marco
Antonio Pamplona. Revoltas, repúblicas
e cidadanias. Rio de Janeiro: Record,
2003, pp. 93/94.
[13] Ver Domenico Losurdo. Democracia
ou bonapartismo, p. 55.
[14] Idem, pp.
42/43.
[15] Ibidem, p.
52
A ojeriza dos antigos liberais ao sufrágio universal tinha uma razão bem lógica: os primeiros parlamentos tinham como função exclusiva votar impostos, e eram convocados especificamente para esse fim. Apenas aqueles que tinham posses pagavam impostos, então parecia lógico que apenas estes tivessem direito ao voto. Para os demais, seria um assunto que não lhes dizia respeito.
ResponderExcluirQuando mais tarde os parlamentos passaram a deliberar sobre outras matérias além da mera administração de uma receita de impostos, surgiu a idéia de que todos os cidadãos deveriam ter direito ao voto, independente de pagarem ou não impostos (ou seja, independente de serem ou não proprietários). Foi esse o caminho até o sufrágio universal. Mas é uma tolice afirmar que os conservadores e liberais de hoje em dia ainda desejam limitar o direito ao voto. Isso fazia sentido em uma outra época, quando se buscava a excelência entre os representantes do povo; hoje em dia, muito pelo contrário, os políticos lutam para que seus eleitores sejam os mais ignorantes possível, e não sem motivo, eles veem seus eleitores como um "público", no mesmo sentido em que os animadores de programas de auditório e os pastores de igrejas vigaristas possuem o seu público.
Não é nenhum segredo que, no Brasil, a curva ascendente da corrupção na política sempre acompanhou a curva ascendente da participação popular na política. É sabido que os políticos flagrados roubando o erário costumam renunciar a fim de evitar a cassação, e são geralmente reeleitos pelo mesmo eleitorado que sempre esteve ciente de que ele era um ladrão. Há uma explicação lógica para isso: a maior parte do eleitorado brasileiro é pobre, e portanto, está isenta de pagar impostos diretos. O político corrupto, por definição, é um sujeito que rouba o dinheiro dos impostos. Mas se o eleitor não paga impostos, por que ele haveria de se importar se o político roubou um dinheiro que não saiu do bolso dele? É por esse motivo que as queixas contra a corrupção, no Brasil, sempre foram mais comuns entre os conservadores (vício definido pelas esquerdas como udenismo), posto que os partidos conservadores são apoiados por uma classe média que paga impostos e efetivamente se sente roubada.
Compare o nível intelectual e moral dos políticos brasileiros da época atual com aqueles de 50 ou 100 anos atrás! Isso é uma piada, não há comparação. Paradoxalmente, isso tudo é conseqüência do sufrágio universal, que fez a classe política, paulatinamente, adquirir características idênticas às do povão. O primeiro efeito do fim voto censitário após a proclamação da república foi colocar no cenário político um novo ator: o coronel do sertão, aquele fazendeiro nem tão rico assim, mas que tendo o recurso de transformar os colonos de sua fazenda em eleitores, passou a ditar a composição das câmaras e escolher os prefeitos.
Mas antes que você me acuse de desejar a volta do voto censitário, eu respondo que não. Embora tenha certeza de que a competência e a honestidade de nossos políticos melhoraria mil por cento se apenas a classe média votasse, essa providência teria como conseqüência criar uma massa de não-cidadãos, privados do aprendizado político. Prefiro as coisas do jeito que estão, e o negócio é o povo levar mesmo na cabeça até aprender a votar.
Mundim, tentarei responder com a maior brevidade possível:
ResponderExcluir1)A ojeriza dos antigos liberais à ampliação do direito de voto foi, basicamente, uma questão de classe, na medida em que, pelo menos desde o início do período republicano da Revolução Francesa, era perfeitamente possível conceber um sistema de sufrágio universal. Como representantes da burguesia (principalmente) ou da aristocracia, obviamente não desejavam ceder nenhum poder decisório aos não-proprietários. O engraçado na questão, é que, pelo tom do comentário, você parece sugerir que eles tinham razão! Para, digamos, um senador Demóstenes, seria igualmente "lógico" que todas as questões de Estado fossem resolvidas a portas fechadas por um punhado de banqueiros, industriais e magnatas do agronegócio.
2)Note, pelas informações do texto, que não falamos apenas do século XIX. Por volta da metade do século XX, muitos países capitalistas ainda limitavam o direito de voto, com mecanismos diversos.Atualmente, a estratégia liberal é outra: esvaziar a capacidade de interferência do Estado na economia e nas disputas de classe, a não ser, obviamente, para defender os proprietários dos meios de produção.
3)Como bom conservador, você idealiza um tempo que nunca existiu, cheio de senhores de casaca incapazes de pegar um alfinete alheio. Já que mora no Rio, dou-lhe uma sugestão: vá ao prédio da Associação Comercial e peça para ler algumas encadernações do Jornal do Commercio. Verifique a página 2 de cada edição e verá diariamente todo tipo de trambique, dos mais fuleiros aos mais sofisticados. Verá também políticos e seus paus mandados, usando pseudônimos bizarros, se acusando reciprocamente de todos os crimes possíveis.
4) O "pobre do sertão" sempre votou, de acordo com a conveniência de quem estava no poder. O nível do censo no Brasil era baixo e a fiscalização efetiva, praticamente nenhuma. Pesquise o que era um "fósforo" e terá uma boa medida da honestidade do sistema eleitoral do Império.
5)Julgo a sua idolatria pela classe média bastante ingênua. Boa parte dela gostaria de ter o PSDB de volta ao Planalto, mesmo sabendo que isto resultaria em compressão da massa salarial.